Monstros interiores

Bom dia!

Se puderem, ouçam essa música, de Aldyr Blanc e Cristóvão Bastos, com Nana Caymmi.



Hoje é dia de me livrar finalmente dos monstros interiores. 

Todos sabem que deixei o serviço ativo da Força Aérea por não ter sido escolhido para promoção ao posto de Major Brigadeiro (MB). Quem estava por perto sabe em que circunstâncias. Poucos sabem das mágoas que ficaram. Esta música faz-me lembrar delas...

Nunca fiquei indignado por conta do processo em si. Ele era conhecido e foi cumprido, com uma ou outra variação. Minhas mágoas residem no tratamento dado não a mim, mas a minha família, em especial à Alessandra. Vamos aos fatos:

"Batidas na porta da frente
É o tempo..."

Cumpri minha penúltima função na Diretoria de Administração do Pessoal, no Rio de Janeiro. Estávamos no final de novembro do ano passado (a escolha para a promoção ocorreria em fevereiro). Recebi um "convite" para assumir um novo cargo em Brasília, em uma função de MB. Nunca disse não a um chamado da Força. Aceitei e perguntei se assumiria em janeiro ou após a escolha. Surpreso com a resposta, assumi uma semana depois. Foi-me sinalizado que meu nome havia sido aprovado pelo Comandante da Força. Uma boa indicação.

"Eu bebo um pouquinho pra ter argumento..."

No dia do convite, ao chegar em casa, conversei com a Alessandra e decidimos que faríamos a mudança definitiva apenas após a escolha. Fomos prudentes, mas atropelados pelos acontecimentos. Logo após minha chegada a Brasília, houve um jantar de apresentação e boas vindas, durante o qual passamos a ser cobrados a adiantar os processos de transferência. Passei o mês de dezembro acumulando as duas funções, despachando de Brasília os assuntos do Rio e trafegando pela ponte aérea, para cobrir as férias do Diretor, no período das festas. Em janeiro, fiquei em definitivo em Brasília. Quem cuidou da mudança? Pois é, minha amada editora...

Depois de muita cobrança, marcamos a mudança para o início de fevereiro, dias antes da fatídica reunião. Sorrisos e abraços largos todos os dias. Fique tranquilo. Está tudo bem. Cadê a Alessandra?

"Mas fico sem jeito, calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar e eu não sei..."

A reunião do Alto Comando começou na terça-feira. Participam os Tenentes Brigadeiros da ativa (à época, dez). O objetivo é assessorar o Comandante nas decisões relativas à Força, dentre elas a escolha das promoções dos Oficiais Generais. Neste ponto é meu dever falar que eu sabia que não tinha o voto de um dos participantes, por não compartilhar, definitivamente, a mesma visão de mundo. Isso era de conhecimento de todos, inclusive antes do convite.

Nossa mudança chegou na segunda-feira. Estávamos hospedados no Hotel de Trânsito. Passamos os dois dias tentando dar um aspecto de arrumação ao apartamento, a fim de receber possíveis visitas, comuns em dias de escolha. Na terça, não houve nenhuma notícia (fiquei sabendo depois que já havia decisão).

Na quarta pela manhã, saímos definitivamente do hotel para o apartamento. Curioso notar que, ao sair do quarto, avistei o "desafeto", cumprimentando-o militarmente. Ele perguntou-me, não entendi na hora, "para onde iria". Respondi que iria trabalhar e segui para o meu gabinete, deixando a Alessandra em casa para terminar a arrumação.

Às 17:30, recebi a notícia de que não havia sido escolhido. Foi dada por aquele que me havia feito o convite, por telefone, nada mais. Liguei para casa. Como assim? Meu mundo caiu, o de minha esposa desabou...

Confesso que, ao chegar no apartamento onde iria dormir pela primeira vez, chorei muito. Estava acabando o tempo de uma vida. Ele sabe passar, eu não sei...

"Um dia azul de verão, sinto o vento.
Há folhas no meu coração, é o tempo.
Recordo um amor que perdi, ele ri
Diz que somos iguais, se eu notei
Pois não sabe ficar e eu também não sei

E gira em volta de mim, sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro, sozinhos..."

Na semana seguinte, tinha férias a cumprir. Quinze dias. Voltamos para Santos. Alessandra decidiu não regressar mais a Brasília. Eu teria que ficar até passar definitivamente os dois cargos, no início de abril. Reinventamos a vida. Passamos a tratar da arrumação da nossa casa. Confecção de armários, arranjo de espaços, mas também corridinha na praia, água de côco, o apoio da família e dos filhos.

Foi o começo de uma nova etapa na relação, mas minha esposa estava definitivamente magoada...

"Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto
E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver..."

Voltei para Brasília. O mínimo que eu poderia fazer pela Força era entregar meus cargos com dignidade, especialmente em consideração aos meus subordinados, aqueles que me auxiliaram a chegar onde cheguei. Fiz a mudança para Santos (pela primeira vez na vida, fiz uma mudança sozinho, hoje sei o que a Alessandra sofreu nas outras dezesseis vezes). Passei o cargo no Rio para um amigo que foi meu liderado nos tempos de Academia. Passei meu cargo em Brasília para um companheiro de turma, já promovido. Desejei o melhor para ambos. Alessandra e meu pai foram à despedida, em Brasília. Foi engraçado ver a cara do velho Jayme não escondendo o rancor.

O melhor de tudo é sentir o carinho das pessoas que conviveram conosco em todo esse tempo. Aqueles cujo sentimento era levado pelo interesse se afastam. Sobram os leais, que não são poucos. Em nossas viagens recentes (com a agenda livre, passamos a viajar bem mais), recebemos a amizade e a atenção de muita gente. É um sentimento muito bom...

No regresso da última formatura em Guaratinguetá, no dia 29 passado, Alessandra disse que estava mais leve. Venceu a angústia. Segue o jogo. No fim, eu devia este post pra ela.

"No fundo é uma eterna criança
que não soube amadurecer.
Eu posso,
ele não vai poder me esquecer!"

Estou terminando a postagem direto do meu novo escritório. Todos os que participaram da história continuam tendo meu respeito como militar da reserva, pessoa jurídica. Nem todos eles, entretanto, desfrutam agora do meu respeito como pessoa física. Serão privados de minha amizade. A eles, prefiro ficar com vocês, meus queridos leitores. Por isso mesmo, habilitei a área de comentários para todos. Fiquem à vontade para utilizá-la.

"Eu posso,
ele não vai poder me esquecer!"

EU ASSINO

Comentários

  1. Que texto!
    Sempre venho aqui e leio timidamente o texto do meu primeiro comandante, coronel do CA.
    Com o senhor aprendi a gostar de corrida e a entender que também existem chefes humanos.
    Fiquei emocionada com esse texto porque vejo que algumas histórias se repetem em esferas diferentes e que eu não acreditava que seria possível.
    Ainda sou nova na Força, ainda sonho com o dia da transferência, ainda sonho com um mundo mais justo... Mas olho para cima (neste caso, para trás) e vejo bons exemplos na cadeia de comando, o que nos motiva diariamente.

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  2. CMT...no final de uma jornada, só nos resta aqueles que devemos (ou deveríamos, pelo menos)cuidado e carinho por toda a vida: nossa família e os "verdadeiros" amigos. Afinal, forem esses que choraram e riram conosco por toda essa jornada! Mantenha-se em paz! O dever foi cumprido...e com excelência! Reconhecido, com certeza, por quem realmente merece agora toda sua atenção exclusiva! Forte abraço!!!

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  3. Primooo... Vc é sempre e será esse Ser de Luz... Aqueles que não souberam ver isso e, cometeram erros para com VC, cedo ou tarde, terão que acertar contas com ELE o Deus todo poderoso ... E Vc e sua linda editora Alê, agora estão usufruindo de tudo que são merecedores... Família Viagens Vida em Santos perto de todos parentes e amigos, finalmentee... Sempre digo e repitooo... Tem "males" que vêm pro bem... É Deus.. Escrevendo a história de nossas vidas... ELE sabe o que faz...ELE é sábio... Eu creio!!! Agoraaa...Vida que segueee...🙌🏼🙌🏼🙌🏼 Paz e Bem Pvcs.!!!🙏🏼🙏🏼🙏🏼

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  4. Nem sempre a justiça é feita e nem sempre as escolhas profissionais são feitas baseadas apenas na competência. A FAB perdeu. Perdeu um excelente militar, correto, honesto, justo... o líder que adoramos seguir. Mas a família ganhou de volta a convivência com vcs. Nosso pai se enche de orgulho em dizer que agr todos os filhos estão pertinho dele. E vamos viver esse amor de nossa família maravilhosa em nossa cidade tb maravilhosa. Amo vcs!

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  5. Tio Jayme, lembro exatamente desse dia! Todos aqui em casa ficamos pasmos... ninguém esperava por aquilo. Foi triste termos que nos despedir de vcs novamente, enquanto estávamos na expectativa de ter vários encontros da Família Guaratinguetá novamente... Mas sabemos que foi o melhor pra vcs no momento... Ainda quero uma folga pra poder visita-los, lembro das fotos que mostrou da vista do apartamento e de como era lindo, aproveite! Amo essa família! Saudades de todos vcs!

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  6. Grande amigo Jaymão.
    Guerreiro Azul....rsrs
    Somente agora fiquei sabendo com riquezas de detalhes.
    Deve ser porque aqui em Belém as coisas chegam no "lombo de uma lesma manca"....rsrs.
    "Nossa" Força Aérea nem sempre é justa.Nem sempre premia os melhores. E, infelizmente nós sabemos muito bem disso.
    Novos desafios se descortinam.
    Vida nova e longa, grande amigo.
    Parabéns pelo Blog.
    Felicidades.....
    Abraço.
    Chico Monteiro

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  7. Terminei de ler esse texto em lagrimas por lembrar desse momento de aflição e angústia que acometeu a todos que conviveram com o Sr no final da sua brilhante carreira. Era um misto de indignação com desorientação, decepção e medo por não entender e nai saber o que passa na cabeça de nossos comandantes ou das pessoas responsáveis por comandarem nossa força. Então, depois do susto, nos cai a realidade de que nem sempre o mais qualificado, mais preparado, mais respeitado, o líder nato que carrega consigo uma legião de subordinados, simplesmente pelo fato de ser como ele é, um dos seres humanos mais humanos que eu conheci,... Nem sempre são os escolhidos numa disputa aonde as vezes vencem coisas que nao discernimento pra entender. Enfim, o que fica é o legado e o prazer enorme em ter conhecido o Sr, de ter feito parte da sua secretaria, de ter ganho um amigo que fazia questao de ser muito mais do que um chefe, que tratava a todos com igualdade e respeito,e uma amiga tão querida, uma esposa sempre tão presente e cuidadosa. Uma vez disse pro Sr uma frase que ouvimos muito na escola "A palavra conduz e o exemplo arrasta" e o Sr é, com certeza, um exemplo pra todos que tiveram a honra de dividir um pouquinho da sua carreira com o Sr. A Força e a gente perdeu a companhia e sabedoria diárias do Sr, as histórias constantes e hilárias de toda uma vida que faziam o dia passar voando, a vontade de ir trabalhar com prazer e saber que seria um dia agradável, o sentimento de fazer parte de uma equipe... Enfim... Fico muito feliz em ver essa família linda unida e aproveitando cada momento com o Sr. Tem portas que se fecham pra encerrarem ciclos e outros novos e maravilhosos começarem. Feliz nova vida... Falei demais, rsrs, desculpem.

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  8. Meu chefe e comandante, confesso que demorei muito a conseguir chegar aqui e escrever algum comentário que fosse acrescentar algo mais a essa verdadeira redenção na tua vida. Lembro dos incômodos que isso tudo listado já causava, ainda no início, quando nem haviam ocorrido os fatos narrados. E que narração! Li e reli muitas vezes, pois serve pra mim e para todos. Usei como "auxílio à instrução" para muitos amigos. Mas que bom que o Tempo, essa misteriosa entidade, também trouxe bons ares na tua vida e de tua família.
    Redenção, amor, coragem te definem nesse momento.
    Que bom que outra história começou!
    Conte sempre comigo.
    Cel Av R1 Guedes

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  9. Comandante (sempre será o saudoso e querido Comandante), sem muitas palavras, fiquei muito triste na época e agora ao ler, foi inevitável as lágrimas. Mas o Sr pode ter certeza de uma coisa, Deus sabe de todas as coisas e age no momento certo e da forma certa. O Sr e família são pessoas especiais e marcam muitas pessoas pela maneira de agir. Minha eterna admiração e carinho!! Fiquem com Deus!!

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  10. Mágoas, traição, cinismo, choro, mundo que cai, mundo que desaba! Incrível como a lei do retorno foi além de certa, rápida! Quem diria que ia sentir o mesmo amargo das lágrimas que um dia, sem a mínima compaixão e com toda frieza que lhe é característica fez sentir! Digo por mim, digo por outros também. Prepotente, arrogante, vingativo. Provou lá no Comando em Brasília do seu próprio veneno. Leia, exclua meu comentário, pois aqui só tem lugar para os bajuladores e também para os que deu um empurrãozinho, né? Ler suas queixas, a rasteira que tomou me lavou a alma. Chegou ao mais alto escalão para ser feito de bobo, um fantoche descartado da mesma forma com que fez, algumas vezes, naquela época que achava que era intocável. "Boa sorte na sua vida profissional, do portão pra fora da FAB"

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  11. Tá mais que na hora de mais postagens! quando será o próximo tema? Escreve aí , Brig Jayme!

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  12. Jayme Ferreira Júnior, Walacir Cheriegate... Verdadeiramente injustiçados para que outros menos qualificados pudessem ser promovidos. Aqueles que tiveram a honra de trabalhar com vossa excelência sabem o quanto é competente, humano e justo. O melhor da vida começou quando a reserva chegou. Vida longa ao Comandante!

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